segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ser é escrever-me



Quando, em noites de solidão,
peregrinamos
o prazer da criação,
eis que as palavras
voltam a ser nascente,
águas vivas
da memória que resiste.
As palavras necessárias
que, às vezes, ganham sentido,
quando, sem procurar porquê,
a poesia acontecer.
Retomo a velha pena
de escrever-me
que recatara,
no tombo dos feitos
nunca findos. 
Lavo, de seu aparo dourado, 
restos secos,
de tinta sofrida,
e logo volta a fluidez
navegante
dos poemas por fazer.
A proa da caneta
riscando fina
a breve rugosidade do papel,
os manuscritos que resguardo
nas gavetas vivas do passado,
e os livros, companheiros,
que, lendo e relendo,
vou recriando
em madrugadas de espera.

Corpo de escrever poemas






Para quê fingir-me executante
das maquinais ordens anónimas
daquela hierarquia de poder
que nos manda obedecer,
sem servir o pensamento?
Ser, para sempre,
simples corpo
de escrever poemas...
Ter aladas palavras
que esvoacem livremente
por entre nuvens de som,
na sinfonia de estar vivo.
E mãos que pousem
levemente
nas brumas de um sonho
por cumprir.
Por enquanto, sei apenas
que estou sozinho,
sem conseguir
quem, comigo seja espera.
Mas é esse todo o espaço
que apetece.
O vazio da indecisão
que pode explodir
em caminho a percorrer.

Primum vivere, deinde philosophari








Não filosofemos as árvores nem as pedras,
nesta rotina dos dias
que, dia a dia,
vamos sofrendo.
Antes mãos secretamente livres
que possam conter
as canções por fazer,
mãos de segurar lemes e cordas
mãos que possam domar
estas imperceptíveis vozes
que, por dentro, nos dão norte.
Viver é escrever
e descrever-me,
lavrar,
no espaço livre
desta escritura,
o que, além das palavras,
me apetece relembrar.
As mãos semeando sonhos
nos longos pousios do silêncio,
as muitas palavras vivas
assim postas em segredo
e as longas leiras de versos
que vão seguindo a criação.
Entre o ser e o não-ser,
pelos trilhos do silêncio,
quando a noite não é noite
nem é dia,
ser é escrever-me,
domar quem sou,
nesta incerta descoberta
do voo que procuro
depois da espera.

Espera, esfera, esperança






Estou à espera,
sou a espera,
e, feito esfera,
é, de esperança,
que me revivo.
Um corpo pleno de sonho,
que, girando em sua crença,
pode seguir mudança,
preso e liberto,
no peso bem real
da circunstância.
A roda que rola
em seu próprio eixo,
variando apenas
pelo chão
da novidade.
O verbo de seu veio
têm de ser meu centro,
que, no princípio,
era meu fim,
dever-ser de um valor,
herança que é resistência.
Só a esfera, espera,
nos dá esperança.
Só a esfera, espera.
regenera,
em seu revolucionar,
onde os regressos
nos dão avante,
nesse abraço armilar
que é raiz do mais além.
Só a espera é semente,
o situado transcendente,
o breve sinal de voo
que nos dá o procurar.
Tempo de espera
é tempo de esperança,
tempo de peregrinar
minha distância,
de, em revolta,
redescobrir.
Só a esfera, espera,
vai relembrando,
num revolucionário regresso,
com tradição e progresso.
Tempo de voltar a ser
homem de Deus,
eu, mais do que eu,
indiviso e sujeito,
grão de luz
em meu pensar,
sócio, feito pessoa,
português universal,
capaz de saudar
libertação,
na manhã que virá
depois da espera.

Só sei que nada sei






Eu que tive a ilusão de romper
certas algemas da vida,
pois lera, nos livros sagrados,
os sinais da salvação,
não consigo, agora, dobrar
os ferros da solidão.
Filho de Sócrates e Descartes,
analítico, ousei singrar
nessa ilusão bem humana
de chegar a Deus só a pensar.
E, rendilhando paradigmas,
no pensar do pensamento,
por tanto ousar duvidar,
já não sei rezar sem racionalizar.
Homem crescido,
e como tal reconhecido,
pelo papel selado
das certidões oficiais,
nem sequer posso voltar
às nostálgicas certezas
do colo de minha mãe.
Na escola onde, outrora, fui aluno,
eis-me, agora,  professor,
neste meu ter de ensinar,
entre as coisas que aprendi,
tantas coisas que não sei.
Nosce te ipsum!...
Cogito, ergo sum!...
Erudito e letrado, feito doutor,
na própria cátedra já assentado,
confesso ter lido, e relido,
montanhas de papel inanimado,
bibliotecas inteiras
de pensamento pensado.
E, de tanto recolectar
fragmentos, fichas e rodapés,
que, muito hierarquicamente,
fui classificando,
como engenheiro de conceitos,
nas teias sistémicas
de uma qualquer teoria,
foi do próprio espaço vivido
que acabei por me esquecer.
Essa máxima universal
de todos sermos iguais,
de todos podermos ter,
pela simplicidade dos sinais,
um conhecimento modesto
sobre as coisas mais supremas.
Por muito procurar,
fora de mim,
o que, por dentro,
guardava,
fiquei, assim,
encruzilhado.
Mas, de tantos planos inacabados,
aprendi, pelo menos, a duvidar
das próprias regras do método,
daquele pretenso rigor,
muito axiomaticamente dedutivo,
que, por lei, dizem que sei.

Natura rerum




Que tempo fará quando voltares?
Que sonho será quando for dia
e à beira de quem fomos regressar?
Há uma força antiga,
desmedida,
que as forças que penso ter
já não conseguem deter.
Uma força que não tem tempo,
que não tem fim,
uma força que, d’além, nos dá além.
Uma excedente saudade,
que me passa, trespassa
e sobrepassa.
Não é tropismo,
reflexo condicionado,
automatismo.
É uma força bem mais forte,
bem mais funda.
Tem a autenticidade
das nascentes de água cristalina,
a calma serena dos poentes,
o saudoso tamanho
das mais pátrias raízes
e a maternal sombra
das árvores centenárias.
É uma força serena e perfumada,
tão antiga e tão suave
quanto o húmido musgo
das pedras do velho muro
que bordeja meu jardim.
E nesse íntimo segredo,
que me sustenta e fere,
há um dinâmico imobilismo,
a pétrea semente
de um tempo antiquíssimo,
o virtuoso, imanente,
a natureza das coisas,
que procuro.
A pensada raiz da emoção,
que, em carne viva,
pelo sonho, me sustenta.
Humano, demasiado humano,
tão simples como o fluir do tempo,
o seguir a brisa que me leva
à própria raiz do vento,
a força de dizer sol,
de dizer mar,
de dizer pinhal.
onde volta a ter sentido
o sítio para onde vou.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Arca dos poemas por fazer

Arca dos poemas por fazer

Arca de sonhos passados,
onde resguardo quem fui,
onde, recatado, me guardo.
Arca dos poemas por fazer,
desse passado permanecente,
que é futuro feito presente
nas brumas do poder-ser.
Porque dizer profecia
é dizer esperança,
as palavras prometidas
do silencioso segredo
com que me vou semeando.