domingo, 12 de dezembro de 2010

Escritos inúteis


I
Porque estava farto de semear palavras introspectivas, em tantos papéis dispersos deste falar comigo, prometi, em vão, no meu terceiro livro de poesia titulado, que ele seria o derradeiro, onde, como tal, me encadernaria. Já então, me cansava o exagero lírico desse manancial de signos que fez de mim mero artesão de capelas imperfeitas. As muitas palavras, dia a dia, sobrepostas que, de tanto relê-las, nem eu próprio as percebia, desde que ao escrever-me, por ter mesmo de escrever, me foi dado descobrir que a poesia tem de ser missão. Este não saber o que vai suceder, na linha que se começa a escrever, quando, sem procurar poesia, a poesia nos sobrevém. Aliás, só depois de sermos bruma é que as palavras se condensam, em formas que são semente do seu próprio transcendente.
II
Quantos poemas por fazer nestas palavras que procuro. Restos, reversos, os muitos pedaços que refaço, num diverso, feito universo. Os imensos silêncios que rescrevo e que, ao glosar, me dão regresso. Para tecer, entretecer quem sou, neste campo, pensado e repensado. Aqui e agora, procurar ser poesia, pelo simples prazer de fazer versos iguais aos que, naturalmente, sinto. Palavras e sons de todos os dias que, todos os dias despontam, nesta memória de sofrimento que há-de ser libertação.
III
Apetece, deveras, o que não consigo: a singeleza de um poema grego, com os sons de um lirismo lusitano. Porque o poema perfeito não tem palavras a mais, nessa procura da beleza, onde rimas bem buriladas podem ser asas de pedra sob o azul mediterrâneo. Palavras de Bernardim que me levam a sentir Sophia, no telúrico de Torga. Pelo mar de Vitorino, há Camões feito Cecília, para, de novo regressar às confissões de Régio. E, nestas memórias muito prosaicas, de um tempo que passou, tudo quanto escreve é tão real que até os próprios nomes mantenho, contra todas os conselhos da ficção. Uma terra só é pátria quando tiver palavras que os próprios dicionários não conseguem conter.
IV
Pedra a pedra, lavrar o magma das palavras que resguardo, cinzelar meus versos, construir breves poemas da mais fina filigrana, rendilhando o gélido granito numa rosácea de sons, metricamente certos. E também as fantásticas, solenes divagações, as maravilhosas palavras, deliciantes, não apenas som, mas som também.
V
Porque, quando o mistério me enlaça, é preciso ter a coragem da poesia e, sem medo dos medos que virão, poder juntar, num só instante, todas as alegrias de viver. É construir o poema com palavras do dia a dia, porque é do meu destino ser livre na poesia e, mesmo sem procurar rimar, conseguir a harmonia. Há que deixar, para sempre, o poema por cumprir, caminhar por caminhar, para a distância não perder sentido.
VI
Confesso que estava farto desses desabafos sonoros sem raiz na vida, de todos esses delírios surrealistas, brincando aos sons. Prefiro a poesia vivida, plena de música e de emoção.  O poema não tem que ser metalinguagem imperceptível, de palavras que não sugerem os retalhos de vida que o fazem nascer. Seu curso vário, feito discurso, coisa com coisa, compreendendo, tem que nos dar o infinito.
VII
A palavra adormecida num recanto da memória que, de repente nos deslumbra, o ritmo secreto que sob a língua está fervendo. Porque mais além tem de ser música, um sublime som que se desprenda da rotina e, em sombras misteriosas, b refaça. O poema é vento que desperta o sono das gaivotas, um rio de palavras repentinas que vai vencendo as pedras da madrugada. São palavras lançadas nas águas paradas da memória, lentas ondas concêntricas que me relembram sinais de sítios passados.
VIII
E a tua missão, poeta, é procurar. É procurar, não é chegar, procurar por procurar, porque caminhar assim apetece.  Aliás, todas as coisas que me circundam podem ser além do tempo, se o meu sonho quiser e eu souber acreditar.
IX
Por isso, tento, em cada hora do meu tempo, a palavra exacta para esta dolorosa liberdade que, desde sempre, me atormenta. Uma palavra onde caiba todo o azul da primavera, a palavra certa que me dê a poesia vida que não sei cantar. Um só verso que contenha todo o espaço do universo. A palavra sol iluminando as sombras do meu silêncio. A palavra prometida que, há tanto tempo, procuro. A palavra esperança que desfaça as sombras do meu silêncio.
X
Preso na solidão de, todos os dias, ter que recolher subjectivas reflexões, para as quais não queria guardar segredo, julguei não mais poder escrever para todos os outros, porque todos eles me pediam utilidades e não viagens na minha terra, à procura de mim mesmo, pelos passos perdidos da infância.
XI
Clamavam por doutorais dissertações, frias minudências, tabelas, gráficos, quantificadas análises e sorumbáticas conclusões, metodologicamente científicas. E assim me fui dispersando em manuais, monografias, lições. Mas fiquei farto de utilitarismo, deste pensar-me por silogismo, arrazoando o prazer e a dor das conveniências sociais. Ousei, então, continuar a vertigem de viver uma vida que ninguém mais sabe e voltaram as saudades da poesia, estes escritos inúteis, onde, ensimesmado, vou sendo mais sonho. E as palavras romperam da memória, como flores da primavera, nos beirais do pensamento.
XII
Não sei que íntima força me suscitam estas divagantes palavras, alinhadas em formas de verso, que vou glosando, rescrevendo e recriando. Até questiono as confissões e os livros do desassossego. Porque, nas mais secretas palavras com que me vou escrevendo, penso sempre em qualquer outro que me venha a ler e que, intuindo quem sonho, me consiga compreender. Para quê gastar palavras nessa procura do lugar para onde vou, se este lirismo é, afinal, bem comum: todos o sentem, humanamente, os muitos poetas mudos do mundo que vão enchendo gavetas com inutilidades silenciadas?
XIII
Apenas são verdade as incertezas e os mistérios com que nos vamos visionando, essas palavras sagradas que devemos redescobrir para não morrermos de tédio, ou de consumo. Este espaço de escrever as minhas crenças, de poder fingir-me clandestino em coisas perfeitamente legais. Porque neste refúgio das simples dúvidas que lanço sobre mim mesmo, vou fingindo escrever para a eternidade.
XIV
Cada poeta deve ter a sua própria técnica para tentar dizer do indizível.  Uma voz que, nele, e através dele, possa aceder à inquietude da procura, ao espaço da Graça que só Deus tem, mesmo que Deus não exista. E se, dia a dia, trabalharmos a palavra, a poesia nos virá, esse imprevisto de há muito procurado, a fé que acontece por tanto havermos rezado.